domingo, 3 de janeiro de 2010

"Closer - Perto Demais": por que somos infelizes em amor?, por Contardo Calligaris - FSP 03/02/2005

Concordo com Caetano Veloso, "de perto ninguém é normal". Mas "Closer - Perto Demais", de Mike Nichols, me deixou pensando diferente: de perto, somos normais demais.

O filme é uma demonstração tocante de nossas impotências e incompetências sentimentais. Se você quer saber por que, em regra, somos infelizes em amor, não perca.

Para não estragar o prazer de quem não viu o filme, nada de resumo, apenas as reflexões fragmentárias com as quais passei a noite, depois de ter assistido a
"Closer - Perto Demais".

1) Por que, no meio de uma história amorosa que funciona, um encontro (que sempre parece mágico) pode levar alguém a trocar a intimidade de um casal companheiro por uma visão?

Os evolucionistas dizem que os homens são infiéis por necessidade biológica. Para que a espécie continue, os machos seriam programados com o desejo de fecundar todas as fêmeas possíveis. A teoria tem uma falha: as mulheres são tão infiéis quanto os homens (embora os homens se recusem a acreditar nessa banalidade).

O senso comum tem outra explicação: a paixão iria se apagando com a repetição, os humanos gostariam de novidade. Pequeno problema: a idéia de que a novidade seja um valor é especificamente moderna; no entanto a inconstância em amor é um hábito antigo. Outro problema ainda maior: na condução de nossas vidas, somos obstinadamente repetitivos. Insistimos nas mesmas fantasias e nos mesmos sintomas. Contrariamente ao que diz o provérbio, errar é divino, perseverar é humano. Por que seria diferente em matéria amorosa? Como pode ser que um encontro, em que mal se sabe quem é o outro ou a outra, contenha uma promessa que basta para levar alguém a dar um chute num amor que dura?

Tento responder: apaixonar-se é idealizar o outro, durar no amor é lidar com a realidade do amado ou da amada. Antes de ponderar os charmes da idealização, duas observações.

Um impasse: para manter a paixão, devo continuar idealizando o parceiro. Mas, para idealizar o outro, devo mantê-lo a distância. Se mantenho o outro a distância, renuncio aos prazeres de amor, companheirismo, cumplicidade, convivência.

Um paradoxo: se me separo porque me apaixono por outra ou outro, o parceiro que deixei se distancia de mim, portanto volto a idealizá-lo e a me apaixonar por ele.

2) Por que gostaríamos tanto de idealizar o outro que vislumbramos num novo encontro? Uma nova paixão amorosa é provavelmente o sentimento que mais pode nos transformar, para o bem ou para o mal. Por exemplo, se o outro me idealiza, carrego seu ideal como um casaco novo: modifico minha postura para que o pano caia bem no meu corpo. De uma certa forma, tento me parecer com o ideal que o outro ama em mim.

Cada amor, quando começa, é uma aventura. Não porque encontro um novo parceiro, mas porque, ao me apaixonar, descubro ou invento um novo ideal e, ao ser amado, mudo para me aproximar do que o outro imagina que eu seja.

A inconstância amorosa talvez seja a expressão imediata do desejo de mudar -não de trocar de parceiro, mas de se reinventar.

Não é estranho que, na hora em que um amor começa, alguém decida se dar um novo nome. Nenhuma mentira nisso, apenas a convicção e a esperança de que a paixão nos transforme.

Infelizmente, mudar é difícil: a sedução exercida pelos novos amores é uma veleidade, um pouco como as resoluções de que as coisas serão diferentes no ano que começa.

3) Dizem que um casal que se ama briga muito. O uso erótico das brigas é conhecido: a paz se faz na cama. Menos conhecido é o uso amoroso das brigas: chegar ao limite da ruptura pode ser um jeito de recomeçar, de voltar ao momento inicial da paixão, quando ambos esperavam que o amor os transformasse.

Problema: ninguém sabe qual é o ponto de equilíbrio além do qual as brigas não garantem renovação nenhuma, apenas desgastam um amor que se perde.

4) Alguém se apaixona por outra pessoa porque, ele se queixa, sua parceira precisa dele. É aquela coisa: seu amor me exige demais, você me sufoca, me prende. Isso, é claro, é um jeito de dizer: com você sou sempre o mesmo. Também é uma projeção: separo-me porque não agüento minha própria dependência de você. Visto que me detesto por estar a fim de lhe pedir amor a cada minuto, acho intolerável que você me peça. Quem pensa e age assim, em geral, fica sozinho no fim.

5) Um homem volta para o lar depois de ter estado nos braços de outra. Sua mulher pergunta: você me ama ainda? Ela tem razão, é a única pergunta que importa.

Uma mulher volta para o lar depois de ter estado nos braços de outro. Seu homem pergunta: você esteve com ele? Insiste: quero a verdade. Pede os detalhes: gostou? Gozou? Onde aconteceu, em que posição, quantas vezes?

O ciúme feminino é uma exigência amorosa. O ciúme do homem é uma competição com o outro, um duelo de espadas, uma esgrima homossexual que tem pouco a ver com o amor pela amada e muito a ver com as excitantes lutinhas masculinas da infância.

Enfim, quem sabe o filme nos ajude a inventar jeitos de amar menos desafortunados e mais interessantes.

Ajudar é difícil, por Contardo Calligaris - FSP 10/05/2007

NUMA MADRUGADA recente, entre sexta e sábado, levei um amigo para sua casa na zona leste de São Paulo. No fim, às duas da manhã, encontrei-me estacionado na avenida Sapopemba, na frente do terminal rodoviário, só que do outro lado, no sentido centro-bairro. Chovia uma chuva de inverno, fina e contínua.

Naquela altura da avenida, há dois barzinhos com samba ao vivo e, ao lado, uma carrocinha de churrasco.

Na calçada, por causa da chuva, só havia dois bêbados idosos que festejavam balançando precariamente.

No meu retrovisor esquerdo, apareceu, entre os carros estacionados atrás de mim, um vira-lata preto e magro, com a pata anterior direita quebrada. Ele tentava atravessar a avenida. Aventurava-se, mancando, na pista, mas, assustado pelos faróis dos carros que chegavam rápidos e sem interrupção, ele recuava precipitadamente. Duas vezes seguidas, fechei os olhos, imaginando que o cachorro seria esmagado. Mas ele conseguiu voltar atrás a tempo.

O que havia do outro lado da avenida que o levava a tentar aquela travessia suicida? Talvez um restaurante amigo que deixa os restos para os vira-latas, talvez uns amigos ou uma cadelinha com a qual ele sonhava. O fato é que ele queria atravessar.

Eu não tinha guarda-chuva. Melhor assim: os vira-latas desconfiam de qualquer objeto que se pareça com um bastão. Desci do carro e chamei sua atenção: "Pssss, cachorro". Olhou para mim, perplexo: "O que este idiota quer de mim?".

Se tentasse parar o trânsito para ele atravessar, acabaríamos ambos esmagados. Ou talvez só eu, o que tampouco seria um desfecho ideal.

Usar meu cinto como uma coleira e ajudá-lo a atravessar parecia uma boa idéia, só que, antes que conseguisse prendê-lo, ele me morderia, com razão. Ganhar sua confiança para que aceitasse atravessar caminhando do meu lado, como faziam meus cachorros, levaria um mês de treino.

Decidi criar uma diversão que o convencesse a ficar deste lado da avenida. "Cachorro, vem cá", chamei. E fui me aproximando da carrocinha do churrasco, fazendo o necessário para que ele não me perdesse de vista. Os dois bêbados deviam achar que estava mais bêbado do que eles. Nesta altura, o cachorro mantinha uma distância prudente, mas estava interessado e tinha desistido de atravessar.

Comprei dois espetinhos, agachei-me e dispus um primeiro pedaço de carne sobre um guardanapo de papel, no chão. Recuei, agachado, para que ele se sentisse seguro e avançasse para abocanhar a carne. Avancei para servir o segundo pedaço, e ele recuou. Ficamos nessa coreografia, ele para trás, eu para frente e inversamente, até o fim dos pedaços que tirei dos espetos. Estiquei minha mão esquerda.

Desta vez, ele avançou e cheirou minha mão. A articulação da pata quebrada era literalmente virada no sentido errado. Não tentei acariciá-lo, algo me dizia que ele acharia meu gesto abusivo, agressivo.

Poderia ligar para uma colega psicóloga que se ocupa da zoonose nos animais de rua. Mas, se ligasse, às duas da manhã, por esta "urgência" na avenida Sapopemba, ela se preocuparia mais comigo do que com o cachorro; além disso, o que ela poderia fazer que não destinasse o cachorro a uma morte que ele certamente não estava pedindo?

E se eu levasse o cachorro para casa? Talvez um veterinário conseguisse endireitar sua pata. Talvez nos tornássemos bons amigos. Mas quem diz que o cachorro quisesse se tornar um enfeite doméstico? E eu ia fazer o quê com todos os próximos cachorros que encontraria no meu caminho? Fundar um abrigo?

Disse: "Cachorro, não atravessa agora, entendeu? Fica deste lado, que é melhor". Subi no carro e saí lentamente, de olho no retrovisor para ver se meu amigo voltava ou não às suas tentativas perigosas de atravessar a avenida. Avancei até o retorno e tomei o caminho do centro. Ao passar de novo na frente da rodoviária, cruzei os dedos, esperando que ele não estivesse morto no meio da pista. Não estava. Não o vi mais.

No longo caminho de volta, liguei a calefação ao máximo para secar minha roupa e meus ossos encharcados. Estava com a sensação de ter protagonizado uma espécie de frustrante parábola sobre a dificuldade de ajudar o próximo.

Tudo bem, daqui alguns dias, não vai sobrar nada daquela noite. Só esta coluna e, no meu carro, o cheiro deixado pelo longo trajeto com minha roupa úmida, um cheiro de cachorro molhado.